segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Semi biográfico

Com o espelho na mão admirando os cílios e a pele semi-dourada que o sol faz questão de abençoar todos os dias com o apoio de produtos industrializados, encontro-me aqui de frente a um portão, sentada no chão e sem querer, com a moça da judiação sentada ao meu lado. O dia é quase fim e estamos aqui fumando filtros vermelhos, ouvindo Chet Baker e conversando sobre o destino. Conversamos sobre tudo na verdade. O corredor é longo recordando as festas com suas consequências desastrosas, as lamentações e um alívio por saber que somos sobreviventes.


- Haviam maracujás nas paredes.
- Fotos da Dilma por todo canto.
- Pessoas vomitando nos sofás.
- Eu não aguentava.
- Tudo e mais um pouco do que você pode imaginar.


As bitucas insistem em não passar por cima do portão. A gente joga e elas caem em cima da mureta. Questão de honra jogá-las d'outro lado e insistimos. O dia de amanhã pouco nos importa, mas me separa do ontem. A tal coisa chata de partir brevemente mais uma vez.
No bairro as pessoas são simples e você se sente uma exceção por andar de chapéu, camisa flanelada até os joelhos e olhos inchados. A padaria da esquina não é tão receptiva quanto antes, as pessoas não envelhecem mas o preço das tortas aumentam e criam uma barreira entre o seu espírito capitalista e a revolta de querer comprá-la. 


- Quanto tá?
- Dois e cinquenta. 
- Vocês estão caros, né?
- Faz parte, moça.
- Sabe, eu não bebo. Quer dizer, bebo pouco. Por uma questão lucrativa, por que vocês não diminuem o preço da torta e aumentam o preço da cachaça?
- O santo é caro! Se a gente fizer isso, o santo fali. 
- E eu que trabalho 40h por semana me fodo?
- Por ai... 
- Um dos motivos pra eu odiar a igreja é isso. O povo além de ser estúpido, joga cachaça no chão pro santo.
- A culpa não é da Igreja, moça. Deus tem nada a ver com isso.
- E com as minhas 40h semanais de trabalho, sem um puto no bolso pra comprar a torta? Deus tá sabendo?
- Tu reza?
- E tem que rezar ainda por cima? Eu trabalho 40h por semana, a torta tá R$2,50, o povo joga cachaça no chão e eu ainda tenho que rezar?
- Tem que ter fé!
- Meu caro, tenho R$ 1,50. Me vê tudo de pão porque até isso o todo-poderoso faz questão de cobrar. 


Foram sete pães. Um pra cada dia da semana...

No sofá verde, pós banho, ponho-me olhando os detalhes da estante que lembram o século 19. São bonitos mas não diminuem a minha revolta com o mundo. Revolta ridícula, convenhamos, mas necessária quando se está periódica. O silêncio do apartamento, da vizinhança e da televisão é maravilhoso e decido sentar no chão da cozinha... Periódica. Dane-se, Brasil. Sento aqui e coloco qualquer coisa pra tocar. Coloco o velho cantando sobre cordas bambas e conflitos internos. Sempre tive esse defeito de observar exageradamente as coisas. É um defeito, enorme. Se eu for parar pra calcular quanto tempo eu perdi observando inutilidades e o passear do relógio, devo ter deixado de viver uma vida, com certeza. O lance é que não consigo não observar, não ir até a janela ver as novelas alheias, não contar quantos grãozinhos de café ficam no final da xícara e isso inclui detalhes imbecis tais como as entradas na cabeça do Napoleão, as unhas roídas de quem aperta o botão no elevador, o jeito de amarrar os cadarços, o descaso da moça colocando o pão dentro do saco, por ai vai. 


De uma certa forma, é ridículo contar a vida com números. São positivistas e o retardado do cara que resolveu por o a.c e o d.c na linha do tempo começou do 1 enquanto meio mundo vai achando que o milênio virou em 2000. Entende? 


- Eu com a sua idade era noiva.
- Eu com a sua idade era professora.
- Eu com a sua idade era mãe.
- Eu com a sua idade tinha quatro empregos.
- Eu com a sua idade já era formada.


Ok. Eu com a idade de vocês vou estar dando descarga na vida e os seus malditos números que fazem do passado um motivo pra eleger momentos heroicos e fracassos. Tô levando a vida, de chapéu e flanela do falecido. 

Nenhum comentário: