terça-feira, 5 de março de 2013

Botas furadas




A Consolação não tinha fim e a Praça Roosevelt não chegava nunca para os meus pés que ardiam dentro do par de botas velhas de couro. Eu devia ter ido pela Augusta, mas a noite estava tão convidativa para uma caminhada solitária, dessas que você cruza em pessoas tropeçando no próprio cansaço. O arrependimento me bateu depois que sai do encontro naquele boteco perto da Praça. A sola da bota já não aguentava mais e eu optei dessa vez pela Augusta baforando seu calor humano na minha cara – desde o começo do baixo até a esquina do Safra. Mais uma noite longa, irremediável e com os mesmos rostos. Isso não me incomoda tanto no instante, mas depois, quando a necessidade de escrever me vem, me irrito com o fato de não ter visto nenhum cenário novo.

Foi Hemingway que disse certa vez que Degas deveria ter aproveitado mais a luz para pintar seus quadros, porque ao contrário de Van Gogh – que era fissurado pelo amarelo –, Degas simplesmente detestava essa cor. Hemingway costumava observar os quadros de Cézanne para construir seus próprios cenários na hora de escrever e é isso que eu ando tentando fazer de uns tempos pra cá. Acontece que nem cometendo o pecado do anacronismo eu consigo, porque quando penso em quadros lembro imediatamente do meu pintor predileto, citado anteriormente. Van Gogh e eu temos uma relação intensa há doze anos.

Quando finalmente alcancei a Paulista, as minhas botas desistiram de mim e num ato de rebeldia, abriram um buraco debaixo dos meus pés. O silêncio que direcionava meus olhos contrastava com a noite da sexta-feira e a única coisa que ardia tanto quanto a empolgação delirante das pessoas descendo a Augusta eram os meus pés.

De uns tempos pra cá a minha concentração anda falhando. Ok, isso é normal... Acontece. Só que ela falha quando eu me esforço para mantê-la ativa e isso acaba resultando na monotonia, tal como este texto entediante.

Para chegar em casa, saindo do centro, pego sempre um metrô, um trem e um ônibus. Nessa ordem sem fim. Sabe, quando estou no trem costumo fechar os olhos e acionar uma câmera imaginária deslizando pelos trilhos. Gosto de pensar que sou o trem. Quando estou andando prefiro olhar para o céu numa tentativa falha de limpar tamanha poluição visual e nessa noite calorenta as estrelas estavam impecáveis, suplicando pelos olhares desatentos dos cidadãos abaixo delas.

Uma coisa que o Van Gogh me ensinou foi aproveitar todas as coisinhas simples da vida. Desde os menores detalhes, até uma sombra, chegando à amplidão do céu. Parece papo besta de “carpe diem”, mas quando você se depara com um mundo vertiginoso ao seu redor, o mínimo farelo de naturalidade te encaixa num parâmetro melhor. O sensível pode te dar prazer, como também pode machucar e a humanidade vai caminhando assim.

A maior vantagem disso tudo é que dessa forma as suas botas furadas que machucam a sola do pé são desnecessárias. E rodar São Paulo numa noite ofegante torna-se um passeio cheio de cenários indescritíveis.  

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