quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Um escuro

Ivo desatinou a descer a bendita rua mais uma vez sem companhia que por sua vez o dispensara. Sem parar para pensar no que fazia, sem olhar para o chão como de costume, sem respirar fundo e com as mãos nos bolsos da calça suja nos joelhos. Não era um tipico mendigo desses que te pedem dinheiro pra comprar sabonete mesmo você sabendo que o sabonete na real é cachaça. Era sei lá, o mendigo mais lindo do mundo.
Aqueles olhos, só eles. A certeza de que poderia amá-los sem nenhuma espécie de traição. Pensou em várias mulheres que poderiam despertar a sensação de desejo com aqueles olhos em mente, e ficou aliviado quando concluiu que nenhuma delas era capaz de dispersar tal paixão. A mocinha da outra história, a própria que havia sumido e se enterrado em algum bar da mesma rua, a dona do tal olhar e dos cabelos que obedeciam o vento independente da direção. Ivo comparou até o amor da moça do sonho com ela e foi o mesmo resultado. Era um amor desses que dá vontade de chorar e sair correndo, tanto que ele o fez ao perambular sem destino pelo trecho de asfalto paulistano. Não conseguia esquecê-la tão facilmente, pensou que se começasse a assistir os filmes do cinema em vez de ficar ali apenas picotando tickets, sua cabeça finalmente iria voltar ao lugar enquanto o coração descansaria, mas não. Tudo errado outra vez. Aqueles filmes na sala em silêncio depois das sessões encerradas não ajudavam, só aumentava a vontade de tê-la ao seu lado direito. Não tinha necessidade de ter uma relação de corpo, pois o que bastaria era somente a presença, o cheiro e aqueles olhos de cílios longos e endurecidos pelo rímel. Onde ela estaria? Onde ela estaria senão ali quieta e atenta como sempre? Ivo não entendia e o fato de não compreendê-la fazia com que aumentasse a saudade, a abstinência... Abraçava-se de noite, entrelaçava as mãos como se fossem as dela, falava sozinho imaginando como seria o reencontro:


- Você é uma tola, mas não... Não senti sua falta. Notei a ausência do cheiro doce e só. Esses seus olhos escuros eu sequer reparava. 


Sofria em silêncio e era o orgulho vestido de homem. Não iria admitir jamais que estava horas a fio pensando naquele pedaço de gente que não tinha nem idade suficiente para entender o que se passava naquela solidão existencial. Talvez estivesse precipitado ao ter esses tipos de pensamentos, vai ver ela sofria igual mas não era possível! Não podia ser! Ela não estava nem ai. Era uma criança sem noção nenhuma de crítica e quem sabe até uma grande safada que estava fazendo aquela palhaçada de propósito com um homem sozinho. Que vagabunda, pensou. E aquilo lhe satisfez. Sim, para quê tudo isso, Ivo? Essas noites em vão, essa descida toda pra quem nem tomou um café da manhã. Não vale a pena o mal estar do fim do dia. 
Parou diante da entrada de um boteco, mais um em que possuía uma conta para pagar os fiados, tirou do bolso o resto da carteira e ali mesmo ficou depois de acertar os dois litros de leite que pegara na semana anterior. Sentou-se na mesinha do fundo e pediu uma cerveja, como quem não tivesse mais nada para fazer nos 10 minutos seguintes. Quando deu-se por si, estava sujo e com a barba por fazer. Estava caótico e lembrou das várias roupas que deveriam estar na lavanderia naquele exato momento. Viveu seus 10 minutos de razão com fervor, fazendo cálculos de quantos dias faltavam para o próximo holerite, o preço da cerveja e do cigarro, a roupa que iria vestir no dia seguinte. Eram minutos de glória onde ele escapava dos olhos e olhava para o jogo de futebol que passava na tv de 14 polegadas empoeirada no alto do boteco. Prestava atenção no papo dos bêbados que não contentavam-se com as bundas enfiadas nos bancos em frente ao balcão. 
O ônibus com destino ao centro quase o atropelou enquanto saía do lugar fedido, desatento com a realidade e vesgo com a chama do isqueiro que acendia seu último Free do maço amassado. A rua que antes o recebera às pressas, agora desfilava aos curtos passos que dava, esforçando-se para não lembrar da menina. Olhava os outros olhos que vinham em sua direção sem nenhuma pretensão de encontrar os escuros em meio a eles. Apenas olhava imaginando que algum daqueles pares já teria tido o prazer de cruzar com o que ele mais necessitava. 

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