sábado, 25 de maio de 2013

Foi suicídio. Se era virgem, eu não sei.

Não é bonito


O livro era a edição mais nova de “Virgens Suicidas” e eu ocupava minhas mãos, olhos e concentração nele. Uma maneira construtiva de escapar de qualquer um que, eu não sei por qual motivo, teima em me fitar dentro do vagão. Ignoro o desconhecido e aos poucos me entrego ao livro das menininhas suicidas – eu ainda estava no início e Cecília já havia experimentado a primeira tentativa de suicídio depois de cortar os pulsos.

O ápice do horário do almoço se aproximava junto com a potência do sol vagabundo que me iludira até eu colocar uma blusa de frio mais vagabunda ainda ao sair de casa às 06h da manhã pra dar aula. Os meus olhos baixos e o pouco calor que acumulava na janela do trem me satisfaziam até que entraram alguns desses guardas que ficam fazendo sei lá o que nas plataformas (atrapalhando minha leitura, óbvio).  Começaram a conversar em voz alta e riam sem parar; Na minha leitura, Cecília já estava morta depois da bem sucedida segunda tentativa de suicídio. Escutei um dos guardas dizer:

- Se o cara quiser se matar ali é tranquilo porque o trem vira com mais rapidez e ai é pá-pum. Foi uma boa escolha.

Meus olhos passaram numa frase do livro como se eu não soubesse ler e as palavras se embaralharam – a concentração já estava seduzida por outras falas. 
Decidi fechar o livro para acompanhar o diálogo dos guardas e suas opiniões sobre o assunto. Fiquei olhando à janela e desenhando empiricamente o que eles diziam:

- Maria me ligou e falou que o trem já tinha ido embora. Começou a gaguejar, sabe? ‘Trem já foi, mo-mo-mo-morreu’.
- Hahahaha, ela é doida. Não dava pra entender nada.
- É, ela só falava ‘mo-mo-morreu’, haha. Ficou perturbada com o suicídio do homem.
- Mas ali é muito fácil se matar, né? O pior é quando o trem bate e leva tudo pro alto, aquele monte de sangue. É melhor quando bate e o corpo fica pra baixo! 

Na hora de imaginar a última fala, lembrei daquela cena do Pulp Fiction em que o Vincent estoura os miolos de um cara no banco de trás, "sem querer". (Me desculpe, foi a primeira coisa que a minha cabeça lembrou...)

De qualquer forma, até ai eu não fazia ideia qual era esse local maravilhoso pra se matar. Imaginei um bem longe dali, zona norte talvez, linha vermelha do metrô, qualquer outro. 

Tenho mania de entrar sempre no primeiro ou no último vagão porque na minha cabeça eles são mais tranquilos pra ler, têm banco pra sentar e não param de cara com a escada onde a multidão se amontoa pra ir embora de uma vez só. Eu desço e dá tempo de andar até a escada depois de o tumulto acalmar.

Estação final, primeiro vagão: desci. Atrás de mim um bêbado despertou afirmando que havia dormido a viagem inteira. Os guardas, com um humor digno de Zorra Total, disseram pra ele tomar cuidado com o vão entre a plataforma e o vagão porque de morto eles já tinham um pra cuidar.

Plataforma vazia, policiais e peritos tirando foto dos trilhos, aquela faixa amarela que eu só conhecia dos filmes norte-americanos quando alguém morria e um punhado de gente querendo estar no meu lugar pra ver o que tinha acontecido, pra ver o corpo-vítima de uma tristeza explícita... Eu não queria ver aquilo. 

Cecília com seu vestido de noiva já havia se matado com um pulo que resultou num coraçãozinho perfurado pela cerca. A coincidência já estava de bom tamanho.

Passei reto e as pessoas me olharam quase raivosas por eu não ter “aproveitado a oportunidade”. Os guardas sorridentes comemoraram: o corpo não foi jogado por todos os cantos da plataforma! Ficou pelos trilhos mesmo e poupou a equipe de limpeza. Mais um suicida entrou para o hall dos “humanos, escassos humanos”.

Do lado de fora da estação acontecia o 2º festival de cachorro quente da cidade com trilha sonora do Tim Maia. As virgens eu enfiei na bolsa e as substitui pela voz entorpecente do Nick Cave a fim de me anestesiar um pouco com a luz vagabunda do sol me amolecendo.

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