quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Quintal de casa



O grito mais suportável do mundo aos meus ouvidos vem lá do térreo e alcança o segundo andar sem muito esforço. Vem de uma menininha que fica chamando o avô - ele com certeza mora no andar de cima - e às vezes ela emenda um "vovô-ô, eu te amo!", mas só às vezes porque na maioria dos gritos aparece somente o solitário "vô! ô vô!".

É uma menininha mesmo, com voz estridente de menininha e corpo de menininha. De manhã, quando acordo pra faculdade, ela sai no colo do vô enrolada no cobertor e dormindo no ombro dele que a carrega com o rabinho de cabelo balançando pra lá e pra cá. Esses dias vi essa cena da janela da lavanderia aqui do segundo andar e achei graça.

Quando eu era uma menininha, eu não ficava gritando pro meu vô, não. Lembro que era mais fácil ele gritar "narizinho! ô narizinho" e aí eu abraçava a mão do velho. A gente era vizinho e aos sábados de manhã eu despertava toda pequena, esfregando os olhos e com os pés sem as meias. Chegava no quintal e o vô estava lá com a mãe papeando e apesar dessa cena acontecer pontualmente, eu arregalava os olhos de surpresa como quem quisesse dizer: "vô, ô vô!". Não dizia, só arregalava os olhos.

E ficava surpresa porque sabia que ele ia me levar pra passear, mas não passeio desses de dinheiro. Passeio de andar por ai que sempre acabava em alguma estimulação pra minha imaginação. E eu me arrumava, colocava o chinelo e ia andar de mão dada com o vô que parecia ter mil metros de altura! Eu era pequenininha demais até os oito anos.

- Eu tirei oito naquela prova, vô!
- Cê é muito inteligente, narizinho!
- E a mãe trouxe um monte de livro! Tem até da narizinho. Só que eu dei umas pílulas pra minha boneca e ela não falou, vô.
- Quando cê crescer, cê vai ser feliz com isso tudo! Dá m&m pra ela que ela vai falar. Vem, vamo comprar um tamanquinho pra você.

Voltei pra casa nesse dia com um tamanquinho azul e uma moeda de vinte e cinco centavos. O vô sempre voltava no final da tarde pra trazer uns doces. Sempre. Ele chegava em casa, eu agarrava o pescoço dele e ele me dava um cheiro! Às vezes ele trazia pipoca também e por sinal, a última vez que eu o vi, ele trouxe pipoca e usava uma blusa de frio azul com cheiro de vô. Sei lá se ele tinha alguma coisa com azul.

Isso foi num típico sábado-de-vô que eu já tinha me acostumado e inclusive, eu achava um saco ter que ir todo sábado na casa dele e da vó. Birra de menininha que jurava de pés juntos que o velho seria eterno.

No domingo seguinte eu não acordei porque me acordaram e na verdade eu só fui acordar mesmo no dia seguinte. As pessoas até me diziam "o seu vô morreu", mas eu não sabia que diabos era isso, oras! Ok, ele morreu. Agora me deixa ir lá agarrar o pescoço dele, fazer uma bolha de chiclete de uva, contar que eu tô lendo "A bolsa amarela" e que a boneca só aceita m&m vermelho! A vó chorava, a mãe chorava, o irmão chorava e eu com os meus oito anos só pensava em falar com o vô.

Dar bom dia e arregalar os olhos.

O vô tinha ido parar num caixão dentro de um velório - coisas que eu também não fazia ideia. Ou fazia. Lembro de ter pensado "o vô morreu, tá bom" quando vi o velho lá deitado de longe, só que a mãe teve a [in]feliz ideia de me chamar pra dar um beijo no cadáver.

- Se despede do vô.

Manhã de segunda-feira. Acordei inundada de lágrimas que não cessavam.

Eu que era pequenininha senti o coração se dissolver na hora que ouvi "se despede". Isso eu sabia o que significava! Era pra sempre e o choque foi tão grande...  Ter a noção de que a gente caminha pra morrer diariamente e que isso não é hipótese. Eu sinto que ali eu amadureci uns dez anos.

O vô foi tragicamente e levou minha infância junto, mas cada rastro de lembrança que eu tenho da primeira fase da minha vida está inevitavelmente ligado a ele de uma maneira linda e com Tião Carreiro e Pardinho de trilha sonora. Não foi uma ruptura traumática. Foi um abrir de cortinas, eu diria.

- vem viver o mundo cão do jeito que ele é, narizinho.

Se hoje eu escrevo, bem ou mal [não me importa], é por causa dele e se eu só sei viver na base do sentimento, idem. A dedicatória do meu primeiro livro é só pro velho Geraldo e mais ninguém. E se tem uma coisa que me dói até hoje é não ter o registro da voz dele na minha memória. É a única coisa que eu lamento por ter perdido ele tão cedo e deve ser por isso que ele não fala comigo quando eu sonho com o quintal de casa.

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