terça-feira, 22 de abril de 2014

Desordem

[trecho do livro novo. ou eu publico essas coisas, ou eu não sei. talvez seja melhor ler o livro todo.]

Ainda criança, lá pelos seis anos, notei que meu corpo era apenas uma película entre essa voz única, que de fato sou eu, e a realidade dos olhos que incluía meu reflexo no espelho, as risadas com a família, os amassos posteriores e tudo que me envolvia quando eu não estava em silêncio. 

Lembro que isso me bateu quando rasguei o joelho. A dor, o sangue, o choro e a carne exposta me calaram e eu fugi pra escadaria do prédio calmamente, aos tropeços. Queria me esconder das pessoas, queria que elas não descobrissem aquele alvo frágil que estava estampado no meu rosto e queria, principalmente, ficar sozinha pra entender o porquê daquela súbita sensação de desencaixe entre mim e o corpo. Me apavorava a ideia de alguém querer dar mais atenção àquilo do que eu. 

Foi nesse dia que constatei o tamanho do perigo que era passar muito tempo comigo e, então, comecei a evitar ao máximo viver isso novamente. Era como se eu fosse meu próprio fantasma. 

Acontece que de uns meses pra cá tem sido impossível não voltar os olhos pra dentro. O tal do "eu" que habita minha cabeça — tão bem detalhado no livro "O Inominável" do Beckett — anda se superando, exigindo mais atenção e conseguindo. Hoje de manhã quando esperava o sinal fechar, me deu uma vontade gigante de simplesmente atravessar a avenida enquanto os carros ainda corriam, sem me preocupar com a consequência certeira. A morte é real e é justamente este o dano: nessas horas me distancio da realidade, da ideia de ter um corpo. 

Fico só pensamento. Assumo isso. E quando quero ser só corpo, me vem uma ressaca existencial. 

É como se eu me convertesse em um devaneio ambulante com frequência, até que aparece alguém que me imerge novamente numa espécie de papel teatral. Penso na hipótese, por exemplo, de morar com minha família sem identificá-la como um vínculo sanguíneo. Como seria? Eu nunca me preocupei em nascer. 

Penso na ausência de tudo e me vejo caminhando dentro de uma fila pra morrer junto com todo mundo, e começo a me apalpar, a olhar minhas mãos, a prestar atenção nos batimentos cardíacos. Não é completamente angustiante, exceto quando tento descobrir de onde vem essa voz convertida agora em letras. Quem a controla? Qual é a origem da razão? Por que tudo parece apontar pro banal? Onde foi parar o ontem? O quão insignificante é o ser humano perante o universo? 

Já me disseram duas coisas a respeito disso: que a morte é uma esperança e que eu deveria parar de ser tão autoconsciente. Só eu sei o quanto é perturbador vivenciar certas coisas que são encaradas como "ciclos da vida". É como se fôssemos essencialmente óbvios e questionar tudo isso se torna um bater de cara com muros continuamente! Nada disso me conforta e parece que despenco numa ilusão (ou o inverso?) quando me reconheço, quando me percebo porque é inevitável, pelo menos pra mim, dar um tempo pra esvaziar a cabeça fazendo porra nenhuma. 

Não há culpa. Teatralizar é a coexistência humana, exceto quando aparece uma tragédiazinha. Não me entristeço com a inconstância dos meus pensamentos — surto, sumo, piro, entro em conflito, desanimo, entro na roda, etc., mas continuo. 

O barulho do vizinho de cima me apreende mais do que 90% dos poemas que leio (dos "poetas novos"), mas às vezes o tal do meu eu se identifica com uns por aí e ultrapassa a película corporal, como se, mesmo sem ter nenhum contato, compreendesse e dialogasse através de manifestações aleatórias. Essas coisas acontecem raramente, mas acontecem. Excesso de realismo pra mim desemboca em ilusão. Parece que tudo está envolto em incertezas anestésicas.

Agora, por exemplo, tenho a janela do quarto aberta. Onze fios elétricos pautam a vista: árvores em frente aos prédios vizinhos e o céu com nuvens caminhando para a direita lentamente. A cena me conforta, mas me perturba. Imagino quanta coisa já se passou abaixo do céu. Penso no pensamento dos mortos quando eram vivos. O que deviam achar dos instantes? Será que pensavam no finito? 

É aí que sucumbo. Viro solidão. Enquanto fico pensando as outras pessoas vivem e me questiono se eu me sentiria bem fazendo o mesmo, mas ai, como se fosse açoite, vou parar onde você já sabe. Meu corpo tem se tornado uma película cada vez mais fina — já não é mais matéria de auxílio. Agora tenho que me controlar pra não perder de vista a sobriedade. 

Não posso me desencaixar. 

Tem alguém batendo na porta.

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