quinta-feira, 8 de maio de 2014

sem título



Ando tão débil que não posso mais voltar àquele bairro simples. Não posso ver a senhora miúda que vende doces debaixo da bananeira. Não posso notar o silêncio do fim de tarde entre as casas. Não posso ver duas crianças brincando na praça com os pés na terra. Não posso ouvir a roda de velhos que entorna cervejas.

Naquela janela vermelha não posso ver a mãe com o bebê no colo. Nem o homem deitado na rede do quintal. As meninas sentadas na calçada de casa. O senhor anunciando produtos de limpeza. O rapaz que vende pão de porta em porta com sua bicicleta.

Não posso voltar a vê-los. Caminhar por ali se tornou uma resistência, uma teimosia, um assombro lindo. Me distanciei tanto que agora tudo parece ser de uma estranheza incômoda, mas ao mesmo tempo familiar, com raízes grossas por todo o caminho que me perguntam o porquê do meu abandono.

Não me vejo em nada aqui e chego ao ponto de não me identificar, além do corpo, com aqueles que conheço. O que me causa desconforto é o que me ampara e quando acho que me encaixei, o mar recua e me puxa de volta para o fundo.

Sou carne moída pela ampulheta e nada mais. O resto é desassossego.

08/05/2014

Um comentário:

sasha disse...

Gostei muito muito muito!